sábado, 7 de janeiro de 2012

A triste história do triste Zèzinho


   Um dia, tendo acabado o ensino secundário e caminhando ocasionalmente numa vereda do seu mundo, Zèzinho viu uma luz ao fundo do seu coração e disse: «O homem vive em sociedade e nesta se encontra a si mesmo, no encontro com os outros. O modo deste encontro é também o modo como ele é quem é. E eu quero ocupar a minha existência a melhorar este encontro e, com este aperfeiçoamento, a melhorar a sociedade e a melhorar-me a mim próprio, como homem e como cidadão. Quero ser jurista! Quero ser um homem do Direito!»
   Zèzinho encontrara aqui a resposta para as imensas dúvidas que em certa fase da nossa vida todos temos -e a ele poupou-lhe muito tempo e tinta, pois quando se candidatou à Faculdade sabia muito bem que estudos queria fazer.
   No fim da licenciatura -deixem-me dizer-vos que o curso correu razoavelmente, nem notas muito altas, nem muito baixas, lá fez umas cadeiras em Setembro, uma ou outra melhoria de nota para compor o diploma final, enfim, o que toda a gente mais ou menos faz-, mas dizia que no fim da licenciatura chegou a outra encruzilhada e teve de escolher a profissão.
   Considerou a magistratura, mas logo descartou a hipótese, dizendo com alguma ironia que por aquele tempo se faziam muitos testes americanos na escola dos juízes, e ele não era grande coisa a inglês...
   Ainda o aliciaram com uma carreira na Administração, mas desculpou-se com o facto de os concursos estarem suspensos por causa do défice das contas públicas...
   Pois. O Zèzinho queria era ser advogado. E se bem o pensou... pior o fez, já que logo na altura da inscrição na Ordem dos Advogados, teve de travar uma refrega judicial com o Bastonário, que em voz arrebatada plena de sibilantes lhe chamava ignorante; e teve de ir lavar pratos para um restaurante, pois a taxa de inscrição no exame de acesso era demasiado alta para os recursos que, acabado de sair da Faculdade, não tinha. A coisa começava difícil!
   Lá fez o estágio. Teve sorte, mesmo assim, pois ao contrário de alguns colegas de curso, que se viam a trabalhar por doze horas diárias sem remuneração -e a isso, tinha de reconhecer, o mesmo Bastonário das sibilantes opunha-se, indignado- a ele só foi exigido o que era razoável e desde o primeiro dia foi tratado pelo patrono e colegas do escritório, como o que realmente era: colega deles.
   O Zèzinho era novo e ingénuo. Acabou o estágio e abriu um escritório. Pela primeira vez, a vocação tremeu. Mas que havia de fazer?, dizia para si. A vida é difícil. E porfiava.
   Acumulou algumas dívidas, felizmente pequenas e a credores benevolentes. Ao mesmo tempo, tornava-se credor do Estado pelos serviços que no exercício da vocação de jurista lhe prestava. E agora não era o Bastonário que o apostrofava de ignorante, era o ministro da Justiça que lhe chamava vigarista, para justificar urbi et orbi o facto de não pagar sequer ao Zèzinho, ou de pagar com enorme atraso e sem juros, as despesas que ele adiantava, no interesse dos cidadãos necessitados dos seus serviços, qual Robin dos Bosques tirando aos seus credores o que dispendia a favor dos carecidos a quem o Estado, ufano de um papel social próprio das nações civilizadas, conferia a prebenda do seu apoio judiciário. E este mesmo Estado, tão bom, tão social, fazia ainda o Zèzinho pagar impostos por rendimentos que por vezes não tinha, chegando até a exigir-lhos por conta de rendimentos que ele bem sabia que provavelmente continuaria a não ter.
   O tempo ia passando e o Zèzinho ia ficando um bocadinho menos novo, um bocadinho menos ingénuo, um bocadinho menos optimista. Um dia, estava ele um pouco acabrunhado, qual formiga de La Fontaine, passa por ele um antigo colega de curso, que aparentava estar bem na vida. Bem disposto, cordial, aproximou-se dele com amizade e perguntou-lhe como ia.
   -Ora, disse o Zèzinho com desânimo, cá vou andando... E tu?
   O outro estava óptimo. Tudo lhe corria às mil maravilhas, o trabalho não era muito nem pouco, mas as coisas andavam muito bem... Vendo que o amigo precisava de uma ajuda, prestou-se logo a dar-lha, graças a uns bons conhecimentos que tinha. E foi assim que, alguns meses depois, o Zèzinho, que nunca tinha ido para norte além do Mondego, surgia numas listas às eleições legislativas como candidato por Bragança.
   Não foi logo eleito, mas como o seu partido -ou melhor, do amigo- tinha ganho o escrutínio, alguns eleitos foram para o Governo e chegou a vez de o Zèzinho tomar assento na Assembleia da República.
   -Então, 'tás a gostar?, perguntou-lhe o amigo, uns dias depois, quando se encontraram no Rossio.
   -Eh pá, sim! -disse o Zèzinho- Olha, vou ali à Ordem suspender a inscrição...
   -P'ra quê?! -perguntou-lhe o outro, muito admirado.
   -Então, mas deve ser incompatível, não?... E além disso, a separação de poderes...
   -Ora essa! Claro que não. A lei é clara; e se não fosse, haveria um acórdão de um Supremo qualquer, daqueles de trinta ou quarenta páginas e que explicam muito bem que certas coisas que parecem, não são; e que outras, que não parecem, são.
   -Ah sim? -perguntou, ainda um pouco inocente, o Zèzinho.
   Tirasse aquela ideia bizarra da cabeça, disse-lhe o amigo. E foram almoçar a um restaurante caro, porque o amigo tinha um cartão milagroso que alguém lhe dera -ele já nem sabia quem- e fazia questão de comemorar aquele encontro tão feliz.
   Vou poupar-vos a pormenores e minudências, que seriam francamente excessivos e só serviriam para vos tomar o tempo precioso, do qual algum me estais a dispensar, favor e amabilidade de que me não quero apropriar abusivamente.

   A verdade é que tudo agora corria muito bem ao Zèzinho. E ele só evitava passar pelo Largo de S. Domingos, por recear que o Bastonário lhe atirasse à cabeça um código civil anotado, daqueles grossos, ao mesmo tempo que da varanda do salão nobre vociferava contra os depugados, quer dizer, os deputados advogados, como ele agora, coitado, que só fazia pela vida...
   Mas que vida era a dele? De facilidades? De lãzeira? Nada disso! Havia dias em que mal tinha tempo para respirar!
   De manhã, ia para a Assembleia, onde fazia propostas de lei e votava leis.
   À tarde, ia ao tribunal onde, no interesse dos seus clientes, que servia com denodo e dedicação, no cumprimento das mais sagradas normas deontológicas, discutia as leis que aprovara na Assembleia.
   Mais à tardinha, tendo sido nomeado pela Assembleia da República para isso, ia à reunião de um Conselho Superior, onde apreciava disciplinarmente a conduta dos magistrados perante quem tinha discutido as leis por ele feitas e aprovadas, e que eles iriam aplicar.
   Só quase à noite chegava ao escritório, estafado!, e ainda redigia uns projectos de lei que o Governo encomendara àquele escritório por considerá-lo um daqueles sem o qual o interesse público e o bem de todos não poderiam passar.

   Não admira, por isso, que de vez em quando saísse com os amigos, para se distrair. Eram uns encontros muito sãos, entre pessoas unidas por fortes afinidades e uma amizade de betão! Como convém, encontravam-se à mesa, mas antes cozinhavam o repasto, para o qual todos levavam algumas vitualhas, que depositavam num enorme tacho, à volta do qual todos se postavam, com um utensílio adequado para mexer, apurar, temperar e degustar. E assim, todos cozinhavam! Por brincadeira, haviam-se habituado a chamar ao caldeiro “A República” -que, aliás, não lhes pertencia, mas era já como se fosse deles!
   Para além do Zèzinho estavam outros colegas do seu escritório e de outros, e não talvez o juiz nem o procurador com quem ele havia estado, à tarde, no tribunal, mas algum outro que poderia rever as decisões destes, e mesmo um ou outro que poderia rever a revisão da decisão, para além de outras pessoas ainda, todas distintas e de muito bom porte ministerial, empresarial, ou corporativo. Como todos trabalhavam muito e vinham ainda com a fatiota do trabalho e nenhum se dispensava de participar no cozinhado, alguns dos convivas punham um aventalinho bordado para se protegerem dos respingos, porque no melhor pano cai a nódoa, e isso também ali não faltava. Outros ainda, um pouco mais místicos, atavam uma corda a uma perna, para no momento do ágape se lembrarem dos famintos e assim, de uma vezada, fazerem da refeição um consolo para o corpo e um refrigério para a alma.

   Uma noite que fora jantar para as bandas do Castelo, vim tarde para casa e apanhei um táxi. O motorista, conhecedor profundo das ruas e vielas de Lisboa, desceu a colina do Castelo por umas artérias por onde eu nunca tinha passado. Espreitando pela janela, consegui divisar a placa toponímica na fachada de um prédio, onde se lia «Rua da Justiça ao Intendente», e por baixo, entre parênteses «(antiga rua da forca)».
   A zona era manifestamente mal frequentada: encostados às paredes viam-se sujeitos façanhudos e mal apresentados, com o aspecto típico de industrial da noite e da exploração da vida alheia, e às esquinas paravam pobres criaturas que pela sua indumentária e exposição mostravam ali estar à venda, para satisfazer os desejos de quem lhes pagasse. De súbito, no meio deste panorama sui generis chamou-me a atenção a curtíssima mini-saia de uma meretriz que trazia um casaco curtinho de pêlo branco que abria para um grande decote e umas meias pernilongas de cor preta, que se enfiavam nuns sapatos de meio metro de tacão. Chamou-me a atenção qualquer pormenor dourado e olhei melhor o pequeno trapo que lhe cobria a zona pudibunda... e que reparo, com espanto? Aquilo não era uma mini-saia, mas um aventalinho bordado!... e olhando agora para outra figura ao seu lado, reparo com não menor estupefacção que, sob uma cabeleira loura platinada e com umas longas pestanas falsas, a compor uma maquillage exagerada, estava... o Zèzinho!!! O Zèzinho e os amigos, que desta vez haviam mudado de vestuário -parcialmente, pelo menos- e se ofereciam agora a quem desse mais, nas ruas fétidas dos bares manhosos do Intendente!

   Como imaginais, foi um choque para mim. Eu conhecia o Zèzinho -ou julgava conhecer- e aquela visão deixou-me claramente perturbado.
   Fui dormir, na esperança de que tudo aquilo não houvesse passado de uma alucinação, provocada talvez pelo cansaço e por alguma coisa que tivesse bebido depois do jantar.
   No dia seguinte, saído à rua perto já da hora do almoço, entrei num café de bairro para tomar o primeiro café do dia e, realmente, acordar. Mexia o açúcar, quando sem querer olho para a televisão, onde no telejornal passavam as notícias. Já tinha esquecido o episódio da madrugada anterior e atribuía-o a um fenómeno alucinatório, mas de repente que vejo? Numa peça sobre a manhã desse dia, aparecia no Centro de Estudos Judiciários o Zèzinho, com o rosto ainda ligeiramente vermelho do blush mal retirado, a proferir uma alocução sobre “Deontologia no exercício de cargos públicos à luz do relevo constitucional do princípio da separação de poderes”!
    Fiquei estarrecido e o meu rosto deve ter expressado uma perturbação tal, que um senhor de certa idade, ali presente, me tocou no ombro e disse:
   -Não pense nisso! Olhe que mata a cabeça, a pensar nessas coisas!...
   Ainda aturdido, olhei-o, sem o entender. Ele prosseguiu, fazendo menção do programa que passava na tv:
   -Não ligue! Aquilo é conversa de putas!
   Tentei desdizê-lo, sem convicção; quis dizer que não, que o Zèzinho tinha vocação de jurista, era um homem do Direito, era... mas só me ocorreu murmurar, vencido, sem alento:
   -Pobre Zèzinho!... Pobre Zèzinho!... que triste País!